Mar Ciano (Crônica)

Como em todas as noites no mar Martin tinha ido dormir cedo. De forma que pouco depois da meia-noite ele já estava disposto a mergulhar até achar o Titanic. Os dias eram mais longos, as noites mais fascinantes e a paz ainda maior. Seu colchão ficava no chão da cabine de comando perto do beliche de seu pai. A porta para o convés ficava aberta durante toda a noite e como o espaço era pequeno seus pés ficavam para fora se banhando da brisa marítima. A vista era maravilhosa, ele via as ondas se formando no horizonte até por fim explodirem no casco do barco. Tanto no seu quarto em terra quanto ali abaixo do leme, ele não conseguia dormir sem música. Por isso o item principal de sua bagagem era o ipod​, que estava batizando aquela noite com The Smiths para compensar as musicas que ouvia durante o dia.



Toda aquela viagem fora subestimada. Durante os quatro dias que passara no mar ele tinha amadurecido muito. Talvez pelo tempo para pensar, ou pela paciência que desenvolveu aguentando o tédio e o balançar das ondas. O mergulho em mar aberto cansava rapidamente, então ele tinha muito tempo para desperdiçar em cima do barco. Não que isso fosse realmente estimulante, pois passava o dia comendo, contando piada e ouvindo axé. Já tinha chegado a hora do lobo quando finalmente desistiu de dormir. Foi para o convés e subiu para o teto da casaria.

A lua estava cheia e gigantesca, quase colidindo com seu mundo. O mar estava escuro e estrelado, espelhando o céu que clareava a noite. Diferente de todas as vezes que parou para estudá-lo, o céu marítimo estava nu, exibindo todo o peso que Atlas carregou nas costas. Cobria-se ocasionalmente quando uma nuvem cinzenta passava, mas diferente da cidade, nenhuma luz da terra o ofuscava. Aquela vista não o levava a reflexões, mas a uma admiração profunda.

​ O mar era colossalmente grande e tudo relacionado à viagem estava em proporções épicas. Tanto a comida quanto o céu eram esmagadoramente inconcebíveis. Ele olhava para o horizonte e se sentia insignificante. O oceano era humilde e assim deveria ser aqueles que por ele se aventuravam.

Ficou flertando com o mundo de cima da casaria até a aurora começar a arrebentar no deserto azul. A estrela d'alva apontava para o leste, assim como o barco. A direção para casa...

Esgueirou-se para a beirada do teto e viu seu pai deitado nas cordas da âncora na proa do barco olhando para o horizonte. Ele o ouviu.

- Sua mãe insiste que eu pare de trabalhar no mar – Ele falou, ainda olhando para o mesmo lugar – Você trocaria isso tudo por um escritório?

- N-não... Nunca – Martin respondeu surpreso com a pergunta.

- Bom. Nem eu. Filho, não importa para onde vamos, a melhor parte da viagem é quando voltamos para casa. Porém eu também sinto que estou no lugar certo aqui no mar. – Seu pai disse, ainda de costas para ele. Martin estava fascinado, como sempre ficava com tudo relacionado ao pai.

A manhã chegou, o barco reviveu e os tripulantes começaram a sair de seus beliches. Elefante apareceu no corredor para a cozinha. Um homem grande, ou um elefante pequeno. Moreno, careca e desajeitado, era o mascote do barco. Protagonista das maiores e melhores piadas, qualquer caso relacionado a Elefante era cômico. O mamute tirava a bermuda e mostrava a bunda gorda espontaneamente, como fizera uma vez quando Jon estava filmando os golfinhos para mostrar às suas filhas, irmãs de Martin. Uma vez ele chupou o dedão de Nego Cabeludo quando este estava dormindo, simplesmente porque queria fazer alguma coisa engraçada. Ele ganhou um apelido para cada dia que viveu. Assim a cidade toda tinha um cardápio de vocativos para o homem, só sobrando sua mãe para chama-lo pelo nome. Ele correu para a proa e começou a recolher a âncora.

Como todo habitante do mar, os marinheiros sempre foram exóticos. Cada um com suas peculiaridades desde que inventaram as jangadas.

- Quem veio sóbrio ficou bêbado, de tédio, de saudade, de paixão, ou de medo. O fato é, ninguém volta imaculado para casa – Uma vez seu pai lhe contara gargalhando como um pirata.

Todos foram para a popa do barco em busca do café da manhã. Quebraram o jejum com cereal, granola com iogurte, pão com mortadela, suco e risadas. Ao se abastecerem os tripulantes foram para seus postos. Elefante foi para a cabine, Nitó foi recolher a rede, Martin e seu pai foram para a proa colocar o equipamento de mergulho.

- Hoje agente vai descer fundo, tem um cabeço ao norte com muita vida, na viagem passada peguei uma garoupa e um dentão lá – Jon falou.

- Beleza! Vou revezar com você – Martin disse, já colocando o capuz.

O barco navegou para o norte enquanto Martin se alongava e meditava. Seu pai estava sentado na borda em silêncio. Ele já tinha se alongado, e seu preparo mental viera naturalmente com a experiência. Quando o barco chegou no ponto, Martin já tinha colocado as nadadeiras e estava esperando na borda do barco. Então Elefante gritou da cabine:

- Jon! O barco tá em cima da pedra!

Ao ouvir Jon pulou na água, em seguida Martin pulou.

O mar balançou e entrou no canudo. Inundou a respiração e chamou de volta sua consciência. Ele esvaziou os pulmões até colarem como sacolas molhadas, em seguida encheu-os como um balão até pairar sobre as ondas. Com o espirito harmonizado ele estava preparado para inundar a mente. As ondas nunca gostaram de segura-lo lá em cima, e sempre o chamavam para o fundo quando ele estava ao alcance de suas vozes.

Imergir e existir. Afundar e sumir. Na metade do caminho o mar já não o puxava mais para cima, então caiu como chumbo em queda livre no azul profundo. Através da água o futuro parou e o passado se afastou. Sentia-se com se um milênio tivesse passado desde a ultima vez que usara as pernas para andar. Lá em baixo os pequenos anfitriões escamosos se afastaram, para se protegerem do visitante ou para saudá-lo. Ele voltou! Diziam. A queda o levou para perto dos corais coloridos deitando-o nas areias molhadas. De súbito Martin começou a levitar...

Com um pouso delicado ele acordou uma arraia mal-humorada. A areia o levantou como um tapete mágico, de cauda e carpete de pele. Após um pequeno voo pelos corais Martin abandonou a carona, despencando novamente e se distanciando da superfície. Ele se virou para cima e olhou para a placa azul ciana como um pássaro olha para o céu: distante, mas alcançável.

Uma agonia percorreu sua garganta e o abdômen se contraiu lutando por ar. O corpo estava lembrando-o da condicional. Poseidon o expulsou de sua casa com um conselho espinhoso:

- Um humano sem visto não permanece no reino imortal.

Então Martin se conduziu para o céu e para o exílio.

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