Pomar de Sorrisos

  Chovia levemente no gramado da raposa. O terreno era belamente esculpido: as gramíneas eram espessas e fofas, pareciam um tapete; o pomar, bem aparado, coloria os fundos do terreno com faixas de frutas nos pés dos troncos; a casa perto do pomar era linda, com várias redes na varanda e paredes de pedra-mel. A raposa cuidava bem da sua toca. Naquele dia especialmente, o pomar estava abarrotado de mesas de madeira e faixas de pessoas coloridas cobriam as frutas. Era um dia ímpar de celebração.
  Eu havia sido convidado dessa vez, estava a passeio. Entreguei um saco de arroz na entrada e fui até o pomar procurar algo para beber. Enchi uma de taça de vinho e me afastei vagarosamente das távolas e risadas convidativas para saborear a bebida. Da mesa mais próxima de mim, um homem se destacava vestido de terno. Pela forma que ele se vestia e sorria, aquele dia era muito especial, embora um conforto de alguém muito experiente sombreasse seus arredores, afastando qualquer interrogação alheia de sua aparência. As pessoas que falavam com ele pareciam acostumadas a vê-lo daquela forma. Um kilo de alimento não perecível correto? – uma voz fina e suave me atordoou com a pergunta. Procurei o destino e, ao meu lado, uma jovem moça também encostava-se na mesma mureta que eu. Dos seus cabelos loiros pendia uma câmera fotográfica.
Sim, arroz do digno pajé Sepé. Uma entrada barata para uma festa dessas – respondi, de repente interessado num dialogo.
Seu olhar parecia tomar nota da minha resposta enquanto se dirigiam ao homem sorridente
– Ele faz muito isso né? – perguntei.
– Como?– Sorrir, eu digo. Olha como parece um profissional – gargalhei como se acompanhasse o homem, da forma mais natural que consegui – Vê? Estou a anos-luz de distância de um sorriso assim. Olha que usei aparelho durante toda adolescência.  Ela sorriu. Acho que começava a despertar o mesmo interesse que o meu para conversar. Queria saber mais dela. Ambos fazíamos arte. Eu quadros, elas fotografias. Eu visualizava o mundo e só reproduzia uma imagem depois de dignamente temperada com o molho parcial da minha realidade.
Ela devia ter um olhar apurado, para absorver somente a realidade. Como um Machado e um Castro, eu começava nosso romance, embora estivesse simplesmente cativado pelo ultimo sorriso.
– Conhece ele? – ela perguntou.
– Não – respondi – fui convidado pela aniversariante. Embora eu não seja muito próximo dela também, nós fazíamos teatro juntos. - percebi que ela ficava mais interessada, embora já não fosse mais minha intenção em cativa-la com papo barato. Já havia conquistado a conversa, agora só queria saber mais a seu respeito.
– Entendi. Bom, ele realmente sorri muito isso. Posso até confirmar-te que és uns profissional. Aquela raposa sorridente trabalha na câmara, embora só seja o RH dos lobos.
  Demorei digerindo aquilo. Fazia todo sentido obviamente, mas a simples presença de um desses fazia meu corpo tremer. De medo. Era enraizado, eu passava a vida reclamando e culpando os chacais dirigentes da realidade caótica do meu país, mas nunca me imaginara estar perto de um provável espécime.
– Realmente, isso explica muito – respondi sorrindo, embora ainda estivesse mastigando a informação.
  Por alguma razão, eu ainda não conseguia ligar o homem ao bicho. O repentino medo desaparecera e eu olhava aquele rosto faceiro e não conseguia enxergar a maldade. Misturada em minhas dúvidas, a simples questão saiu quase sem querer:
– É corrupto? – perguntei. Porque ela saberia aquilo eu não sei, mas ela sabia alguma coisa.
  Ela me analisou e então respondeu:
– Ora, isso é subjetivo... pra quem ele é corrupto? Para o povo ele é um representante da família e dos bons costumes. Para aqueles ali em sua volta? Um sócio. E daí nós começamos a ver a fonte de dúvidas... – ela respirou mais fundo e um olhar triste acompanhou o resto – ...Para ele mesmo? Um benfeitor. Para conseguir dormir, essa raposa deve se imaginar um pastor. E eu duvido que ele tenha problemas de sono. É por isso que está onde está. Não se engane dizendo que o povo não vê. O povo vê muito bem. Mas vê cansado, vê pela TV. Vê depois do trabalho, no horário eleitoral, um homem que diz representar tudo o que ele precisa: sua família, seu emprego, seu conforto. Para quem não tem nada, esses que aparecem com a resposta mais simples para um problema parecem ser os que mais sabem das coisas. - ela ergueu a cabeça e seu olhar triste foi até o homem sorridente e sem olheiras -No fim, ele é só mais um defendendo seus interesses e seu estilo de vida. Ele quer o mesmo que o seus eleitores: prosperidade e estabilidade, embora não se preocupe em necessariamente dar-lhes isso. O problema da ganância é que, dependendo de quem se fode, é somente ambição.
– É a hipocrisia – eu disse – Enganando a si mesmo, fica mais fácil enganar os outros.
– Exatamente. – Ela disse satisfeita por eu entendê-la.
  O clube dos sorrisos brancos foi um a um desaparecendo, apesar de irem na mesma direção. A moça estava virando o cálice de vinho quando eu perguntei seu nome e sua profissão.
– Meu nome é Helena. Bom, pra minha mãe eu sou jornalista, mas pra você eu devo ser mais uma matraca – Ela respondeu entre risos – E o seu nome?
– Meu nome é Martin e eu sou… – Pensei por um momento. Para ela, eu não precisava pintar quadros. Só precisava ser – um bom ouvinte – completei e terminei o meu vinho.
  Ela sorriu e levantou-se.
– E então, quer mais?
– Por que não? – respondi.
  Saímos para pegar mais vinho na mesma direção em que a alcatéia seguia. Helena tirava fotos minhas enquanto registrava com a câmera os lobos acompanharem a raposa até uma toca perto dos pomares.
  O que talvez nos diferenciava é que onde ela sentia tristeza, eu sentia indignação. Onde ela lamentava, eu sentia uma raiva que ardia na mera menção. Nós dois vivíamos a mesma realidade, o dinheiro daquelas negociações volta e meia vinham dos nossos porquinhos. Todavia, a minha inércia andarilha, do rapaz que se move lentamente acumulando energia, parecia esperar um alvo digno para se romper. Toda aquela energia descansada ebulia em minha espinha, querendo correr até a toca e socar a raposa sem cessar. Mas eu ainda não o faria, assim como muitos, eu não o faria. Pelo menos não sóbrio, pensei. Agora a vida em meio ao caos parecia mais interessante. Não me recorreu naquele dia, mas Helena já causou uma guerra e afundou uma civilização. A história parecia se repetir, pois aquela ali me arrastava lentamente nessa direção, começando pelo vinho.








3 comentários:

  1. Tal como os poetas esperam a brisa efêmera da inspiração , aguardo o restante da saga de Martin, jovem escritor!
    Diga-me:
    Seu personagem é cativado por um riso doce e frágil,
    ou se rende facilmente à olhares impávidos e desbravadores?

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  2. Obrigado por acompanhar as divagações!
    Martin é cativado por tudo que lhe tire o ar e faça-o esquecer de respirar. Qualquer sorriso sincero lhe deixa assim... Sem fôlego.

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  3. Acompanharei tudo o que me faz transbordar
    Seja a poesia
    ou uma boa taça de vinho.

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