#1 Big City Nights

 Era uma daquelas noites. O frio logo cedo me levou a uma dose de uísque.
 - Jack com três pedras de gelo - pedi no Batidão da esquina. Enquanto eu assistia o metrô sugar cidadãos para dentro da terra, o garçom preparava a bebida e, mais uma vez a maldita consciência do Criolo me alertava, “não existe amor em SP...”.
 Profeta nosso de cada rolê, este se provava cada vez mais certo. Como um oráculo inoportuno, o refrão embarcava no vento frio, passava pela rua, e assobiava no meu cangote.
 "Eu te disse", lembrava.
 Em São Paulo, só restava a nostalgia do amor. Em alguns momentos era a temperatura, outros era o caos da cidade. Eu não sabia lidar com a euforia silenciosa, pois fui criado em uma vila de pescadores e sempre me senti acolhido pelo mar. A água me recebia com uma garrafa cheia e após esvazia-la, levava o casco e me trazia uma mensagem. Algumas vezes eu ia à praia receber as cartas, e de repente estava manso.
 Contudo, o caos da cidade me deixava inquieto. Aqueles rostos desconhecidos levando vidas cheias, lidando com ansiedades e saudades. Não demorei muito pra me tornar um deles, pois a vida de estudante me rendia tempo demais pra pensar nessas coisas. Finalizei o copo, paguei a conta e desci a rua.
Mais uma vez eu voltava sozinho. Por dentro do bairro, o frio soprava meu cangote e ia rua adentro arrepiando os desolados estudantes que caminhavam de volta pra casa. Esses resistiam à sina de São Paulo há algum tempo. Saiam no fim de semana, se tornavam líquidos e voltavam semi-vivos para o lar. Tentei algumas doses disso, mas cansei. Queria mesmo alguma virtude pra me entregar. Uma dama doce, alguns gestos educados, nerdices no ouvido, a melhor que se pode provar.
Mas dessa vez a rua ainda existia, então só podia ser o lugar.
À minha frente um homem estava sentado na calçada, seu corpo, refratava. Pra alguns invisível; pra mim, de fora, brilhava. Não brilho de fada, nem de anjo, era um brilho de sirene que eu também costumava ignorar.
Exigindo ser diferente, olhei pra ele. Mas só aquilo não bastava.
 - Tem lugar pra mais um senhor? - perguntei. Antes dele responder, me sentei na calçada.
- Sem problemas - ele respondeu, desconfiado.
Naquele momento eu não me sentia mais em São Paulo. Estava invisível para todos os efeitos e talvez estivesse salvo.
 - O senhor vive há muito tempo aqui? - Vim pra cá quando era criança, sou de Conquista na Bahia.
Pensei um momento naquilo e perguntei quase automático:
 - Como era Conquista? O senhor se lembra?
 - Lembro... Tinha uma ponte cruzando um rio... Costumava brincar por lá. As crianças passavam o dia jogando bola no mato, e alguns mais atrevidos tentavam pescar a sucuri que morava embaixo da ponte. A gente passava o dia tentando pescar a cobra. Uma vez ela pegou no meu anzol, mas a cobra era forte demais pros braços de moleque que eu tinha. Ela quase me levou pra dentro do rio - os olhos do homem se arregalaram por um momento, como se visse a cobra. Levantou num pulo e assustou um casal que passava na calçada. Virou-se para mim e continuou a história - alguma vez já pescou cobra, guri? - me perguntou animado.
 - Nunca pesquei cobra, senhor. - Respondi gargalhando. O velho senil me lembrava os velhos caiçaras da minha cidade - me conta, tu conseguiu pegar a cobra?
 -Aaaaah... Consegui. Mas ela pegou alguns dedos meus - gargalhando, o velho tirou a mão de dentro da blusa e faltavam-lhe três digitos na mão esquerda.
 - Oh, porra! Como foi que ela fez isso?
 - De onde você é, guri?
 - Sou do litoral, nasci na praia.
 - Ah, você vai sacar rapidinho. Me dá um trocado pra mim comprar um goró que eu te conto.
 No frio, goró é copo d’água.
 - Nada mais justo - respondi, dando uns trocados pro velho.
 - Então - ele continuou - na minha terra, a gente tira o anzol da boca do peixe na marra!
“Na minha também”, pensei.
 A noite embalou na história do velho. Ouvimos corujas enquanto ele falava da pescaria de cobra. Voltei pra casa revigorado. De repente, tudo ficou claro.
O velho tinha pescado virtude dando sangue. Na cidade grande, a saudade do amor, era o mal do cansado.





4 comentários:

  1. É no caos da cidade
    que andamos como isca
    esperando sermos pescados
    pela virtude daqueles capazes de amar.

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    1. No caos dessa cidade,
      sou um mero pescador paciente
      Ciente de que, pro amor, sou mera vitima.

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  2. Flutuemos então, pescador
    nesse mar de divagações paulistanas
    Meio sorrisos nas bocas
    que de tão cansadas deixam-se embriagar.

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    1. É o que nos resta afinal
      Se não for pelo mel do amor,
      que seja pelo mel do licor :)

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