Psico-engate (prosa poética)


 Estou morrendo, é verdade.  Não da gripe que me assola, diga-se de passagem.
– Mas quem clama por mim além de vós? – pergunto – ó colchão, ó sofá!
– Deite e espere... – ela sussurra.  Novamente a Enfermidade leu minha mão.
– Estou morrendo... – lamento.

 Meu lamento causa atraso, e, ao notarem, logo me cobram progresso. Eis que respondo para o enviado:
– Nenhum avanço por aqui, capitão! – atualizo de prontidão. O suor escorre da testa junto com minhas inspirações tão necessárias.
– Parece que não haverá nenhum, de qualquer forma. – o Capitão da Humanidade responde.
– Mas... Eu estou esperando!
– Sei disso. Todos nós estamos. – encerrou e foi embora antes de eu começar minha continência.
– Estou morrendo... – lamento.

– Erga a folha, olhe-a sem piedade, rabisque sua ideia como uma faca rabisca a carne – instruiu o Poeta Violento.
 Ergo-a então, como dizia a instrução e começo a rabiscar qualquer coisa sem paixão.
– Assim não dá! A felicidade não vem! Como devo escrever então? Essa exaustão apodrece em minhas veias! – protejo-me em desculpas.
– Tanta decepção... Se não queres mais a arte, rasgue-a então! – braveja o poeta, coberto de emoção.
– Estou morrendo... – lamento de antemão.


 Paro um instante em questão:
– De que morrerei? Será de lamentos? – pergunto-me – Não será de gripe no entanto, pois esta me namora há tempos.
– Cirrose então? – sugeriu a Enfermidade esguia.
– Não, não. Amantes não ficam bem quando têm de chorar sobre o caixão.
– Mesmo assim, vai morrer! – ela gargalhou.
– Tão certo... – sussurrei.
 Eis que tendo um infortuno compromisso o poeta manda-me um mensageiro.
 Um pombo tão branco quanto o papel em minha mão, tão sujo quanto as palavras rabiscadas.
– Rasga! Rasga! Rasga! – a ave grasna. Partindo o céu e meus sentidos com suas palavras de solução.
– Rasga! – ela insiste.
– Mas eu ainda nem comecei! – protesto. 
 Deveria aprender: protestar não funciona.
 No desespero da aflição, acabo acatando minha angústia. A lixeira é tabelada. Uma cesta.
– Três pontos! Três pontos! – o pombo grasna em novo discurso.
– Vá! Vá! No limbo ela se preencherá de menos indecisão. Não preciso de agouros para provar minha disfunção.

 Mais uma vez eu não terminei. E antes nem tivesse começado, se eu soubesse que me afligiria tanto assim a falta de inspiração. A fim de mais escusas me retiro ante a vergonha, pois lembro a minha sina e a de todos no saguão.
– Estou morrendo... – lamento, mesmo faltando mais tempo que vivi para o fato consumar.
 Eis que chega um desavisado e me encontra em prantos de vergonha e frustração; aproxima-se do Capitão para ser atualizado e logo então ele se impera, como se guardasse um sermão à vera, durante toda sua velhice, próprio para aquela ocasião.
 Grita do saguão, e todo mundo o escuta.
– Já amou algum broto, guri?
 Pensei por um momento.
– Já plantei umas goiabeiras, mas nunca deram frutos. Já plantei feijão em algodão, se é de brotos eternos que perguntas. Mas nunca amei meu cultivo, não, senhor.
 O pretensioso senil logo se envereda pela minha ingenuidade.
– Falo de mulher, rapaz. – ele gargalhou – Mas não deixe escapulir o entendimento dos brotos eternos!
– Conheço mulheres sim, mas confesso que desisti de compreender tal entidade.
 Já as amei em sofrimento, senhor. Entretanto, só desejo confessar em poema minhas felicidades, prefiro morrer a escrever sobre dor.
– Lamento, lamento. Olhe seu estado! Não já estais morrendo? Porque não uma amargura no papel, se esta te libertará do passado?
– Estou morrendo... É verdade! – me animo morbidamente com a única certeza que alcancei.
– Então, vá! Redija em estatística quantas lanças estão empaladas no seu corpo. Sintetize em realidade o mesmo veneno que julgas amante!
– Não quero! Não quero! – berro.  
 Deveria aprender: berrar não funciona.

 "Vai chegar... Estou morrendo...”. Eu pensava me debatendo.
– Sei disso. – disse Meu Amor. Aparentemente escondida em toda minha desolação.
– Todos nós sabemos – por telepatia declararam todos sentados.
– Sente aqui, amor, porque em pé cansa. – a Enfermidade informou. Tomando-a, libertando de me apunhalar com o vocativo.
 “Amor...” A breve menção me fez estremecer. Tanto já foi dito por tanta gente!
 Não escrevo tais prescrições médicas!

– Estou morrendo...  – balbuciei e sentei.
 Sentado reflito, e sem dor em parte alguma, me pergunto como estou.
– Estou bem, obrigado. – respondo calmo – E... Estou vivo, obrigado! – agradeço com um berro.
 Me levanto da cadeira rapidamente, como nunca me levantei antes.
– Mas você vai morrer! – a Enfermidade bravejou, tentando me arrastar de volta para a caverna – Para que se exaltar?
– Vou morrer... é verdade. – respondi – Mas estou vivo, obrigado!
 Olhei para as entidades no saguão.
– Capitão? – chamei-o decidido.
– Vejo que temos novidades por aqui. – ele responde, de pé ao lado da Enfermidade. Passa a mão na sua pasta e me entrega uma nova folha.
– Não sairei daqui até molhá-la completamente de lágrimas! – garanti a todos.
– De tinta, não?
– Exatamente! De lágrimas!

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